Uma diferença que sentia de outras relações era a falta de pressão para qualquer coisa, sem cobranças ou excessos. Mas uma diferença maior era que [****] abria as portas para ela, dava flores toda semana, lembrava os detalhes, tomava iniciativas. Com algumas costumava ser o contrário: pareciam esperar que ela tomasse essas atitudes, que pedisse, que fizesse — por quê? Por roupas e um corte de cabelo? Mesmo num mundo tecnicamente à parte da norma e que a rejeita, ela ainda se replica [ou se impõe? ou invade?] de alguma forma — não era um parasita, então? Pois desprender-se não ia além da matéria? A não-conformidade não devia se afastar totalmente das convenções construídas para a conveniência de quem as ditava? E entre mulheres o que ditava qualquer coisa se não o querer? O querer cuidar, o querer ficar, o querer-por-si-só, desejo, desejo, desejo.
[esse trecho está na página 154-55 do livro que eu estou louca pra lançar (mas por planejamento vai demorar um pouquinho) e é com ele que vamos entrar no assunto de hoje porque é o resumo do que quero dizer]
Mulheres desfeminilizadas seguem sendo alvo de conteúdo raso e preguiçoso que sempre viraliza, e é sempre dizendo as mesmas coisas: comparação com homens no geral e principalmente uma associação de que desfems são tóxicas ou escrotas ou que vão tentar comer toda e qualquer menina que verem (queridas, não são mulheres que fazem isso). “Ah mas a fulana…” — a fulana não é uma comunidade inteira. E sempre vem aquela benção de pessoa dizer “ah mas nem todo hom-”. Há uma diferença clara entre a generalização sobre os homens x generalização de uma minoria, mas vamos relembrar:
Nós vivemos numa sociedade patriarcal na qual homens são protegidos, beneficiados, supervalorizados e têm carta livre pra fazer tudo e saírem como “meninos”. As atitudes deles são baseadas numa estrutura historicamente tóxica e problemática que acarretou em toda a configuração horrível que vivenciamos hoje. O que uma lésbica faz não tem uma raiz estrutural que se reflete em todas as outras lésbicas.
Vale dizer que o comportamento dos homens é definido e propagado na socialização: no meu tempo de escola tinha um menino ou outro na turma que não era um babaca [!] mas que eventualmente acabava se juntando aos outros e todos eles ficavam exatamente do mesmo jeito — até o terceiro ano todos agiam da mesma forma quando estavam juntos (ainda que a gente soubesse como alguns eram diferentes longe dos outros).
Mulheres lésbicas sempre foram associadas ao masculino: “ela está tentando ser homem / ela quer ser homem”, a associação de ser “predatória” e quando você dizia que gostava de desfems alguém sempre falava “por que não pega homem logo?”, como se um tipo ou um estilo fosse a mesma coisa que o todo que compõe uma pessoa e como se atração se limitasse a isso.
Então generalizar desfems e associá-las ao comportamento masculino além de ignorante, é violento. O que a maioria não parece entender é que uma coisa não é o oposto direto da outra, as coisas não são preto no branco: não ser feminina não significa ter o comportamento tóxico masculino, se trata de um estilo, um modo de expressão como qualquer outro.
Dor de cotovelo, hein
“Minha ex era desfem e fez isso”, “fiquei com uma desfem que fez aquilo” — isso não é motivo para compará-las ou associá-las ao mesmo nível de um homem. Chega a ser desonesto, na verdade, porque por mais cafajeste que você considere uma mulher nunca vai representar o mesmo perigo que um homem, e não somente isso, nunca terá as raízes sociais que eles têm. Vi um vídeo de uma garota falando horrores sobre como mulheres conseguem ser piores do que os homens (imagine ter esse nível de deslocamento da realidade), que são vis e blablabla (o vídeo tinha mais de um minuto e não aguentei trinta segundos), enfim, a misoginia internalizada estalava nos olhos dela e eu cansei de ver mulheres repetindo esse discurso. Quando era mais nova escutava direto (porque saía mais de casa e tolerava mais o ser humano) “sapatão é pior que homem”, agora vem mulher que diz gostar de mulher colocar elas abaixo de macho? Mulheres também podem ser ruins, podem ser abusivas e tóxicas, mas nunca vão representar o que eles representam.
Então pelo amor de deus minha filha, esquece sua ex. Pessoas erram, pessoas podem ser mau caráter, mas achar que o comportamento de uma pessoa é equiparável a toda uma classe e todo o histórico dessa classe já é pra lá do exagero; essa mania de ficar presumindo, no fundo, é preconceito ou problema interno —vire gente ou se resolva.
Códigos normativos e o escambau
Lembro de ver ínumeros relatos ao longo dos anos de desfems desabafando sobre como eram elas a ter que tomar atitudes como as que se vê (do homem) em relações heterossexuais, como se a outra garota, ainda que também fosse lésbica, esperasse iniciativas, não as tomasse ou não desse a mesma reciprocidade e apoio emocional — o que entra naquela associação de masculino = sem sentimento (que já vai pra outro caso também estrutural que não vamos discutir agora porque já entra em outros âmbitos), e como associa-se não feminino = masculino, todas essas outras associações vão junto. Tudo que se vê e se espera dos homens é projetado nessas mulheres por elas não performarem feminilidade. Lendo isso parece muito óbvio, mas tem gente que ainda não entendeu — então caso ninguém tenha te ensinado e nem avisado, essa news vai.
Mesmo num mundo tecnicamente à parte da norma e que a rejeita, ela ainda se replica [ou se impõe? ou invade?] de alguma forma — não era um parasita, então? Pois desprender-se não ia além da matéria? A não-conformidade não devia se afastar totalmente das convenções construídas para a conveniência de quem as ditava?
Insisto nessa parte porque é sempre ela que me ocorre quando vejo esse tipo de coisa.
Um gay fazendo a lancheira do denguinho dele foi visto como heteronormativo e comparado a trad-wife (?) enquanto uma mulher lésbica que não se enquadra nos padrões também é criticada justamente por não se enquadrar (???). A verdade é que até a gay mais padrão e harmonizada vai ser olhada torto porque continua sendo parte de minoria; alguém ainda vai ter nojo de você.
Em vez de ter uma união para reafirmar e apoiar as não-conformidades, há um esforço constante para que se distancie (e rejeite) elas e se aproxime do que for “aceitável” ou dito como norma. O que querem simular exatamente? Aceitação ou normatividade? Porque além de nenhuma das duas virem, não beneficia em nada. Só te afasta de quem tem uma vivência parecida com a sua (é isso que te assusta?) e a gente não se fortalece longe dos nossos. Você ainda é o que é, larga esse osso do mundo de lá.
A pessoa que você realmente é vai te perseguir até que você a abrace com carinho.
Toda desfem é uma princesinha
Nenhuma mulher é menos por não satisfazer / não atender a uma norma. Houve uma época em que não ter filhos e não casar era ser considerada uma mulher incompleta, e as peças que faltam só se renovam porque nunca seremos o suficiente, nunca atenderemos as expectativas para a sociedade como um todo; entre nós mesmas não deveria ter exigência de performance alguma.
De novo: não performar feminilidade não faz ninguém menos mulher, continua sendo tão mulher quanto sempre foi, em todas as suas pluralidades — e é por isso que desperta tanto querer.
Então se faça o favor de tomar vergonha e tratar desfems com o mesmo carinho que você almeja — ela também quer ser chamada pra sair, ela também quer chorar no seu colo, também quer surpresa, prazer, romance, flor e presentinho.
Se permita ao prazer de fazer uma mulher sorrir, de fazer uma mulher gozar, de dar o conforto e a segurança que ela também precisa. Ela tem medos e anseios como você, a mão sua, o coração acelera, a pele arrepia — tudo da mesma maneira. Tem a mesma delicadeza (não aquela que vendem, mas aquela coisa leve de toda mulher, aquilo que faz ser fácil demais querer, uma coisa magnética de um jeito que só existe dentro de mulheres na própria intensidade e que nem todo mundo tem oportunidade de provar — e se você tem vai jogar isso fora por quê? por roupas e um corte de cabelo?). Se acontecer de se apaixonar por uma desfem, ame ela por inteiro — sem as esperas que o outro lado impõe. Você também não atende todas as demandas; se livre dessa necessidade e dessa reprodução. Nosso jeito próprio de viver é muito melhor que qualquer código de conduta.
Amar uma mulher já é a chance de provar o que muitos não vão chegar nem perto. Quando se estabelece uma reciprocidade é uma das melhores experiências que se pode ter.
“o carinho de mulher é muito bom mesmo […] se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais fino” — Clarice Lispector, A Hora da Estrela.
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com carinho,
bê;
Que texto mais importante e bem feito
Texto importantíssimo!! 🧡